sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Chapeuzinho Vermelho Entrevista o Lobo

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Muitos anos depois, Chapeuzinho Vermelho entrevista o lobo, já no fim da vida:
- Então Lobo, como foi mesmo essa história de você ter comido minha avó e, depois, descomido quando viu que ia morrer?...
- Bem, disse o Lupus resignado, na verdade, a história é longa e tem muitos atenuantes a meu favor.
- Foi numa época de grande fome, de carestia, de miséria total no mundo dos bichos.
- Eu era novo, sem juízo; magro a ponto de ter a barriga grudada na coluna. Literalmente grudada. Os nós da coluna lombar podiam ser contados na superfície da barriga, o que dava a nítida impressão da chamada barriga de tanquinho.
- Eu jovem, faminto , sem juízo, influenciado pelas lendas da mocidade. Sua avó lisa, com uma boa dose de juventude ainda, rosada, robusta e vivendo sozinha na borda da mata.
- Imagine só!...
- Só imagine, não invente.
- Em mim a fome; nela a solidão e os restos de juventude.
- Na verdade, foi sua avó que me seduziu; no bom sentido , é claro.
- Todas as tardes eu passava ali por perto da casa dela e me deparava com algum prato de comida na janela.
- Ora, há entre os lobos um preceito secular A caça deu sopa, pule já nela.
- Mas, eu não pulei não, fiz foi ir me aproximando, todo dia um pouco mais até que tivemos, finalmente, um primeiro contato. Tudo por iniciativa dela.
- Sua avó tinha pele alva, mãos atraentes e um cheiro bom para quem é lobo.
- A tarde morria lentamente. Eu também morria lentamente só que de fome. O jardim da porta da casa estava descuidado, mas tinha flores e era bonito.
- Sua avó, cheinha, cheirosa e procurando parecer bondosa sentou-se no limiar da porta da casa; mais para casebre do que para casa; e estalava os dedos, assim como quem chama cachorro.
- Eu não sou cachorro não, mas a fome, a minha própria solidão, a natureza predadora dos lobos, a inspiração e a desesperança que o fim do dia traz aos lobos, tudo me empurrava para uma atitude de submissão.
- Fui chegando de mansinho, humilde, de orelhas murchas, cauda rebatida quase entre as pernas, ganindo baixinho e aceitei um naco de torta de galinha que ela me ofereceu.
- Toma lobinho; ainda me lembro da doçura daquela voz; coma, não precisa ter medo da vovó. Não tem perigo, a vovó não vai comer você!
- Nessa de “a vovó não vai comer você”, fui me aproximando cada dia mais. Foi, lenta e paulatinamente, se estabelecendo um forte elo entre aquelas duas almas, uma boa a outra faminta; ambas solitárias.
- Cada dia eu vinha mais cedo beirar a casa em busca daquele contato, dos afagos carinhosos que ela me dava, da voz doce e suave e da comida fácil.
- Comecei a querer aquela bondosa criatura só para mim.
- Estava tão envolvido que, de certa feita, passei uma manhã inteira demarcando o terreno que cercava a casa. Lobo demarca as coisas com xixi, não é? Fui urinando calculadamente, pouquinho a pouquinho até contornar toda a área em torno da morada dela.
- Essa ninguém me toma, pensei eu, cá comigo. (sempre no bom sentido)
- Com o passar do tempo descobri que outros seres visitavam a casa: Uns caçadores barulhentos e de odor horrível; um casal que raramente aparecia e, você, uma menininha que vinha cantarolando distraída e trazia sempre uma cestinha com alguma comida cheirosa.
- A velhinha, que não era tão velha, continuava cada vez mais carinhosa; a comida sempre deliciosa; eu, deitando e rolando com os afagos que recebia.
- Aí, vendo aqueles outros seres freqüentando a casa, principalmente os caçadores fedorentos; uma onda de ciúmes me invadiu, me percorreu, me dominou.
- Sou lobo, mas não sou bobo.
- Um lobo tem sempre uma fera dentro de si.
- Arquitetei, então, um plano para ter aquela velhinha só para mim.
- Disfarcei o trieiro que a menina distraída costumeiramente percorria para que ela se perdesse. Isso a atrasou e a levou a inventar um diálogo comigo que na realidade nunca ocorreu. Juro que sou inocente.
- Raptei a conservada matrona que, ao não oferecer qualquer resistência, descaracterizou o rapto. Posso até dizer que ela simplesmente me acompanhou.
- Na verdade eu não comi sua avó. Não, eu nunca a conseguiria engolir inteira e não queria fazer isso. Apenas a raptei e escondi na mata.
- É claro, disse a repórter batendo na testa. Aqueles caçadores só podem ter inventado. Histórias de caçadores... E tanta gente, por tanto tempo acreditou.
Continuando, voltou a perguntar:
- Por que você me enganou fingindo que era minha avó e, ao final, me atacou fazendo-me correr apavorada em busca dos caçadores?
O lobo continuou respondendo:
- Eu queria ganhar tempo. Entre os lobos há um grande respeito por filhotes. Minha intenção básica era ganhar sua confiança e tentar explicar tudo. Não sou bom ator. É 'deznecessário' dizer que não sou 'o melhor do mundo', foi uma idéia 'insana' que tomou conta de mim. Ciúme de lobo é fogo.
- Uma vez descoberto;  você então uma menininha, correu assustada e eu corri atrás tentando me explicar, daí os caçadores apareceram e me capturaram.
- Longe de você, aqueles brutamontes me submeteram a angustiantes torturas (anote aí para a campanha de Tortura Nunca Mais): Me açoitaram, pinçaram minha língua, comprimiram meus testículos, torceram minha cauda, tais e tantas fizeram que eu acabei confessando, esse e muitos outros crimes que eles iam me sugerindo e eu só acenava que sim com a cabeça.
- Levei-os ao esconderijo e, de lá, não sei se contra a vontade dela; trouxeram, sua avó limpinha, seca e cheirosa e inventaram essa história de que a tiraram de minha barriga.
- Tem cabimento uma história dessas? Eu sequer tenho barriga!
- É melhor você acreditar na minha história.
Chapeuzinho concordou anuindo com um gesto e expressando simpatia com uma expressão facial.
Em tempo: - Dê notícias minha à sua avó. Diga que peço desculpas; estou sempre por aqui; nunca a esqueci. Concluiu o lobo já se afastando em direção a uma grande área desmatada.
Em 04.10.2009
Rilmar

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