domingo, 23 de outubro de 2011

Voltaria sempre a ser Médico

Se um dia eu voltar ao mundo em novos renasceres, eu quero voltar a ser médico.
Ainda que, de antemão eu já saiba que vou debruçar sobre livros e mais livros, aplicar e aguçar cada neurônio para no final saber apenas um pouco do muito que precisaria.

Mesmo sabendo que só fortuitamente por méritos ou, às vezes, inatingíveis caminhos, trabalharei em um grande serviço, em requintado hospital; o certo é que, no mais das vezes, vou estar em rincões afastados e sem recursos, em periferias esquecidas, desprovidas e perigosas.
Quase sempre só.

Tendo plena noção dos grandes apertos, das tensões, dos meus conflitos internos, das decisões solitárias tomadas às vezes sonolento, exausto, com medo, exigido acima do que se tem para dar; ora, na madrugada chuvosa, ora nas tardes quentes e sem fim, diante de filas intermináveis, diante de um doente que não melhora, frente a um mal que não consigo decifrar e que vai roubando, ali na minha frente, uma vida que se esvaindo me consome também, me humilha me reduz à minha pequenez.



Quero voltar a ser médico. Médico de corpo, de almas, de pessoas.
Tecnológico até onde meu cérebro e as condições que a vida me permitirem; humano mesmo quando a raiva estiver em mim, quando a depressão me reduzir, a solidão me assustar, o contexto de uma situação exigir muito mais do que tenho para oferecer. Humano, mais com o sofrimento do outro, que é o que importa, que com o meu. O meu eu posso suportar, rastrear, diagnosticar e descobrir o porquê de sua existência e então resolvê-lo ou suportá-lo. O do outro é minha missão auscultá-lo, minorá-lo, torná-lo suportável, solucioná-lo e, se possível, curá-lo, extirpá-lo.

Mesmo sabendo que me esperam longos, incontáveis e intermináveis plantões. Plantões dos quais eu saia direto para outro plantão ou para o consultório, contando nos dedos a sempre estreita relação entre o ganho e as despesas que me esperam lá fora, sonhando com uma tarde de folga junto à família que passa pela vida, esposa e filhos, sem minha presença; acostumados já ao não convívio; ora com mágoa, ora com amor, ou com indiferença pela constância da situação.


Plantões, às vezes terríveis! Onde se passa do sono profundo e inquieto da exaustão, a um despertar repentino sacudido pela mão do colega, da enfermagem ou pelo toque enervante do telefone à beira do leito que está ali como se fosse uma bomba relógio à espreita, prestes a tilintar e mudar completamente a nossa noite. Plantões que nos levam à fraqueza de orar para que chova e contenha as pessoas em seus lares e, assim, amenize nossas noites. Plantões de rezas inúteis pois as tempestades lançam raios, adiantam os trabalhos de parto, causam inundações, provocam medo e tudo leva as pessoas ao pronto socorro. As mesmas tempestades interrompem o fornecimento de energia às casas e ao hospital e, então, temos além de pacientes assustados, da gestante aos gritos, dos traumatizados; as dificuldades de trabalhar à luz de velas e sem os recursos de aparelhos elétricos.


O que realmente vale nos plantões é orar para que nossas capacidades aflorem no momento preciso, nossas decisões se dêem, o ânimo nos tome, haja um bom relacionamento na equipe e entre a equipe, o paciente e os familiares e que, finalmente todas as ações, energia, emoção se conjuguem na busca do êxito em tempo hábil.

Vale ainda pensar que o insucesso faz parte das probabilidades e que, caso ocorra, tem que ficar claro, principalmente para a equipe que: naquele lugar, naquela hora, e com os recursos humanos e materiais ali existentes não se poderia fazer mais.

Ainda assim o plantão fica péssimo e será sempre lembrado e re-analisado, incontáveis vezes na cabeça do médico, na busca de alguma falha ou de coisa diferente que pudesse ter sido feita.


Quero ainda ser médico mesmo sabendo que pequenas falhas contam mais que grandes êxitos. Podemos sair exultantes de uma cirurgia de urgência na madrugada e sermos derrotados, a seguir, por um caroço de laranja que não consigamos retirar da narina de uma criança que chora a plenos pulmões e é levada pela mãe que se retira revoltada e gritando nossa incompetência ao mundo além de nos acusar de grosseiros por tentarmos imobilizar seu pequeno filho ao embrulhá-lo com um lençol para que pudéssemos ter acesso ao bendito caroço de laranja colocado na narina pela própria criança. Fica péssima a noite para a mãe que só na manhã seguinte vai conseguir se livrar do desconforto do filho, fica arruinado o plantão com aquela sensação de inutilidade que se abate sobre nós.

Morrer de estudar mormente quando o vestibular já assoma no horizonte há mais ou menos três anos de nós, estudar todas as noites e correr atrás da prática nos hospitais e pronto socorros quando, dentro da faculdade, descobrimos que o saber é esparso, não está contido na salas de aulas somente, nem nos livros; não vem até nós. É preciso ler, e os livros não estão em nossas mãos, temos que encontrá-los. Agarrá-los e devorá-los atentos e com tempo marcado. As aulas têm que ser hauridas com olhos arregalados, mentes atentas, concentração intensa apesar de muitas vezes estarmos exauridos em nossa capacidade de atenção.


A prática ocorre de todas as formas mas é fortuita, ocasional, inconstante, incompleta e assim, exige uma presença constante do aprendiz nos locais onde se aprende. Uma noite inteira em um pronto socorro pode trazer pouco ensinamento ou ser repleta de casos que um bom profissional pode ir resolvendo e nos ensinando ou resolvendo sem ensinar, ou não ser um bom profissional e conduzir as soluções de forma inadequada, e assim passar um conceito errado ao que aprende e que poderá levar isso para a vida.


Renascido, revigorado, melhorado; consciente de que minhas forças, meu vigor físico e intelectual, toda minha capacidade de estudar e aprender serão direcionados ao objetivo de me tornar médico integral de doentes, de feridos, dos mentalmente perturbados, dos emocionalmente fragilizados, de homens e de almas.
Combatendo minhas vaidades, o orgulho inútil, minhas arrogâncias, minhas fraquezas, meu medo e outras mazelas que não deixaram que fosse melhor que sou...

Voltando a este mundo num renascimento que dizem haver... Cabendo a mim escolher... Voltaria a ser médico e, havendo horas vagas, também poeta e escritor.

Rilmar 20.10.2011

domingo, 9 de outubro de 2011

Beijaria Emocionado as Mãos dos Mestres

Durante toda a minha vida venho conhecendo mestres e, certamente, muitos outros terão a bondade de me ensinar coisas e saberes pela vida a fora.

Beijaria emocionado hoje, as mãos de todos os meus professores e pediria perdão pelas minhas traquinagens, minhas insubordinações, pelas macaquices , pelas vezes que compareci sem ter feito os deveres de casa.
Beijaria com lágrimas nos olhos todos eles e todas elas. Agradeceria muito e, em troca, mostraria meus êxitos, minhas vitórias e diria: obrigado por terem conduzido, orientado, compelido a estudar; àquele adolescente inquieto, rebelde, inseguro, confuso diante da vida.
Obrigado mestres do G. E. Ipameri, hoje: Colégio Estadual Professor Eduardo Mancine.

Obrigado funcionários da disciplina, da secretaria, porteiros, zeladores, obrigado a todos. Meu pai era bedel e sei que era peça importante, tenho orgulho dele.
Rememorando vou ao Grupo Escolar Estadual de Ipameri onde iniciei o primário e também tive mestres inesquecíveis, incluindo aí a minha mãe que era, ora Diretora, ora era professora além da mãe que fazia milagres, com o ganho irrisório que sempre acompanha os professores, ao manter, com meu pai, oito bocas de oito filhos que em casa a aguardavam.

Meu amor por minha mãe necessita de muitos capítulos para ser descrito.
Com tantas imagens habitando meu peito, todas de imensurável importância; para momentaneamente me ater a uma, terei que, aleatoriamente, pinçar no fundo da mente e tentar tirar uma experiência de vida, uma mestra que tenha também marcado muito; um símbolo: Da.Nazária...
A Escola Sant’Ana; Escola de Da. Nazária é um marco inusitado e inacreditável nos dias de hoje.
A mestra ali na frente, cabelos já ficando grisalhos, olhar firme, de pequena estatura, mas forte. Os olhos vasculhavam cada cantinho da sala a todo instante. A voz era calma e eficaz. O semblante envolvia e dominava a sala toda.
Na sala, alunos de primeiro, segundo, terceiro e quarto anos primários; masculinos e femininos.
Conversa nenhuma entre os alunos. Atenção ao quadro, aos livros ou à mestra.
Disciplina plena, pela capacidade da mestra que tudo via, exigindo respeito e dedicação.
Punições existiam, mas sem serem totalmente brandas, eram mais oportunas que severas.
Sobre a mesa da mestra: uma pedrinha arredonda e antiga que era um código para saber se tinha alguém na privadinha do fundo do quintal.
Pedrinha na mesa: sanitário livre. Pedrinha ausente: sanitário ocupado. Funcionava maravilhosamente. A privadinha tinha como porta uma cortina feita com saco de aniagem e, mesmo assim, nunca houve qualquer confusão.
Ninguém nunca se atreveu a sumir com a tal pedrinha ou levá-la para casa inadvertidamente.
A escola de Da. Nazária funcionava de modo surpreendente e maravilhoso.
Imaginem que lá eram matriculados, além dos alunos comuns, os ditos problemáticos de Ipameri e de toda uma vasta região e, lá, por receberem atenção, serem incentivados, aconselhados, exigidos, todos evoluíam positivamente. A sala era pequena para tanta gente; até porque havia sempre alguém pedindo mais uma vaga e, de uma forma ou de outra; sendo atendido. Como as aulas eram no período da tarde, o calor era muito embora amplas janelas iluminassem a sala e deixassem correr um ventinho de quando em vez. Calor, estômago cheio depois do almoço, livros, idade de menino; tudo dava um sono danado e levava a gente a querer sair um pouco da sala. Da. Nazária instituiu então um prêmio para quem fosse estudioso e confiável: permitia que tais alunos fossem estudar no quintal da escola, à sombra das árvores. Por esse prêmio, eu fazia qualquer coisa. Outro prêmio era poder sair antes do final das aulas. Após o recreio as turmas iam sendo chamadas para “dar a lição”. Série por série éramos chamados para formar um semicírculo em volta da mesa da professora e íamos respondendo a perguntas sobre os temas do dia (história, geografia, matemática, português). Quem se saísse bem era dispensado e podia ir para casa mais cedo. Esse prêmio também me encantava. Nós adorávamos Da. Nazária, a quem pedíamos bênção na entrada da sala de aula e a apoiávamos em tudo. Ai de quem a ofendesse. Era, para nós, como uma mãe da época, que cuidava, educava, orientava, exigia e, se fosse preciso, punia na medida. Estou certo de que a relação mestre-aluno era muito boa; hoje, embora mais moderna, percebo que anda carecendo de ajustes; muitos ajustes. Sua ligação com seus alunos era tal que, para citar um exemplo, certo dia eu estava na rua catando esterco para adubar a horta lá de casa e, nesse mesmo dia nós teríamos prova de matemática. Da. Nazária, passando por ali, me chamou e perguntou se eu não estava lembrado da prova e, ao saber que eu estava cumprindo ordens de meu pai, foi lá em casa, conversou um bom tempo com meu pai que era sistemático e inacessível, nisso eu estava de longe; em seguida meu pai me chamou e me mandou ir estudar. Foi tanta responsabilidade sobre meu ombro que naquela tarde eu tirei um dez e nunca mais esqueci aquele dia, nem da atitude dela
Permita mestra, onde você estiver que eu abrace e beije seus cabelos crespos, que possa deixar cair nas costas de suas mãos, ao beijá-las, duas lágrimas de saudade e manifeste esse apreço enorme, essa admiração e agradeça a Deus (lembra que a senhora nos ensinava tanto a amar Jesus?) por esse privilégio de ter sido seu aluno durante um tempo em que tive grandes avanços no meu aprendizado escolar e de vida.
Obrigado Mestres de todos os tempos!...
15 de outubro de 2009
Rilmar